A ANGÚSTIA COMO ESTRUTURA E COMO SINTOMA: Heidegger e a Psicopatologia da Ansiedade

A angústia é silenciosa. E esse silêncio nos diz algo de essencial: que ela nos confronta com aquilo que não tem nome, não tem rosto, mas ainda assim pulsa no fundo do ser.

REFLEXÕES DA CLÍNICA

4/2/202511 min read

1. Introdução

A ansiedade, sob a lente da psiquiatria contemporânea, costuma ser tratada como um distúrbio da ordem afetiva ou neuroquímica — algo a ser estabilizado, quantificado e eliminado. Mas na perspectiva da ontologia existencial, especialmente segundo a filosofia de Martin Heidegger, a angústia (Angst) não é um acidente da psique, e tampouco um erro da natureza. Ela é, paradoxalmente, uma das mais fiéis expressões da estrutura do ser.

Este ensaio propõe uma escuta ontológica da ansiedade, investigando a distinção entre angústia estrutural e ansiedade sintomática a partir de Heidegger, com diálogos clínicos inspirados nas contribuições de Emmy van Deurzen, Mo Mandić, M. Guy Thompson e outros autores existenciais contemporâneos. Nosso objetivo é construir um modelo de psicopatologia da ansiedade que não negue a profundidade da experiência, mas que a honre como um chamado ao próprio mistério de existir.

2. A angústia como desvelamento do ser

Para Heidegger, a angústia não deve ser confundida com o medo. Enquanto o medo está sempre relacionado a uma ameaça específica — algo concreto no mundo, como um objeto, uma pessoa ou uma situação determinada — a angústia se apresenta como uma disposição afetiva que desvela o nada. Não se trata de uma ausência de conteúdo, mas de uma suspensão radical da familiaridade com as coisas. Na angústia, tudo o que nos era cotidiano perde sua solidez e, com isso, o mundo como totalidade se esvai. O que resta não é o vazio, mas uma presença inquietante do próprio existir, como se fôssemos tomados pela estranheza de sermos alguém no mundo, sem um chão onde pisar com segurança (Heidegger, 1927/2012).

Essa disposição não é um acidente psíquico, mas sim uma abertura ontológica fundamental. Por meio da angústia, o Dasein — o ser humano entendido como aquele que compreende o ser — é confrontado com sua liberdade mais radical: a de ser aquilo que ainda não é. Nesse confronto, ele se percebe lançado no mundo, sem escolha quanto à sua existência, mas responsável por ela. Assim, a angústia desvela a própria estrutura da existência como possibilidade (Heidegger, 1927/2012).

Para Mandić (2024), essa concepção filosófica se traduz clinicamente como uma ruptura na narrativa do eu. O paciente que vivencia a angústia pode relatar um colapso de sentido, uma sensação de não saber mais quem é ou o que está fazendo da própria vida. No entanto, diferentemente de uma leitura psicopatológica tradicional, o enfoque existencial convida a compreender esse colapso como abertura. A angústia perturba as certezas e, com isso, possibilita o aparecimento do que ainda não foi vivido. Ela denuncia o automatismo do existir e revela o espaço do possível.

Já Emmy van Deurzen (2010) interpreta a angústia como um dos afetos fundamentais que conectam o ser humano à verdade de sua condição. Para ela, evitar a angústia equivale a evitar a própria liberdade. Em sua prática clínica, a angústia não é vista como sintoma a ser erradicado, mas como oportunidade para reorganizar o modo como o cliente se situa no mundo. A ansiedade, nesse contexto, torna-se uma espécie de linguagem — uma fala do corpo e do afeto — que aponta para a distância entre o modo como o sujeito vive e aquilo que, talvez, deseje se tornar.

Guy Thompson (2024), ao explorar a psicopatologia a partir de uma ontologia da autenticidade, ressalta que a angústia pode funcionar como um índice do grau de fidelidade do sujeito a si mesmo. Ela aparece quando o ser humano se afasta de sua verdade ou quando se defronta com a possibilidade de uma escolha autêntica que o retira da zona de conforto. Em vez de tratar a ansiedade como um inimigo, o autor propõe que ela seja acolhida como sintoma de um "trabalho do ser" — um sinal de que algo fundamental precisa ser ouvido e elaborado.

A angústia, portanto, não é um ruído patológico que deve ser silenciado. Ela é uma música dissonante que pode afinar o ser consigo mesmo. Ignorar sua melodia pode significar silenciar a possibilidade de um encontro mais profundo com a própria existência. Ao acolher sua presença, terapeuta e paciente entram numa escuta que não busca respostas prontas, mas a abertura de novas perguntas — perguntas que emergem do chão movediço da liberdade, da finitude e da responsabilidade.

3. A ansiedade como sintoma: entre retração e fechamento

Na clínica psicológica contemporânea, a ansiedade é, em geral, compreendida dentro de categorias diagnósticas específicas: Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG), Transtorno do Pânico, Fobias, entre outros. Esses quadros descrevem manifestações diversas de agitação, antecipação negativa, hipervigilância, tensão muscular e sensação de ameaça iminente. Tais sintomas são tomados como desvios do funcionamento esperado e tratados majoritariamente como disfunções bioquímicas ou cognitivas. Essa abordagem, no entanto, ainda que útil em muitos contextos, tende a negligenciar a dimensão existencial da experiência ansiosa: aquilo que nela fala sobre o ser, sobre a vida, sobre o abismo entre o que é e o que poderia ser.

Heidegger, ao refletir sobre o “modo afetivo fundamental” da angústia, afirma que ela revela o mundo como um todo se esvaindo, não em partes, mas na totalidade do que se apresenta como significativo. A ansiedade clínica, por sua vez, parece surgir quando esse colapso do mundo não abre espaço para a liberdade, mas gera fechamento. Enquanto a angústia ontológica desvela possibilidades e convoca o ser à autenticidade, a ansiedade sintomática tende a produzir um encolhimento existencial — um estado de paralisação diante do excesso de liberdade ou da impossibilidade de exercê-la (Heidegger, 1927/2012).

Emmy van Deurzen (2002) propõe que os transtornos de ansiedade possam ser lidos como respostas desorganizadas a conflitos existenciais profundos. Quando o sujeito se vê incapaz de tolerar o desconforto inerente à liberdade, à responsabilidade ou à morte, pode desenvolver estruturas rígidas de controle ou evasão. O pânico, por exemplo, pode ser compreendido não apenas como um surto de medo irracional, mas como a expressão extrema de um colapso de sentido — um grito silencioso diante do impossível de ser nomeado. Já o TAG, com sua constante antecipação do pior, parece surgir quando o futuro, em vez de campo aberto para o possível, se torna um labirinto de ameaças imaginadas, reforçando a necessidade desesperada de garantir segurança e previsibilidade.

Mandić (2024), em sua leitura heideggeriana da prática clínica, enfatiza que as experiências de ansiedade patológica costumam vir acompanhadas de uma intensificação do sentimento de desencaixe com o mundo. O sujeito se vê estranho a si mesmo, desconectado de sua vida cotidiana, e ao mesmo tempo capturado por uma sensação difusa de ameaça. Essa ameaça, como no caso da angústia estrutural, não tem um objeto definido — mas diferente da angústia ontológica, a ansiedade clínica não desvela possibilidades: ela fecha, empobrece, consome. A diferença, portanto, não está na ausência de objeto, mas na relação com o vazio: enquanto a angústia filosófica convoca, a ansiedade sintomática desorganiza.

Thompson (2024), ao refletir sobre a primazia da autenticidade em psicopatologia, sugere que muitas formas de sofrimento ansioso estão enraizadas em uma tensão fundamental entre o desejo de viver de forma autêntica e o medo de abandonar os modos inautênticos de ser. O sujeito ansioso estaria preso entre a pressão do dever social e o chamado da liberdade, muitas vezes sem conseguir nomear essa cisão. A tentativa de escapar dessa tensão gera, paradoxalmente, ainda mais ansiedade.

No contexto clínico, portanto, o papel do terapeuta existencial não é suprimir a ansiedade, mas investigar suas raízes ontológicas. Ao invés de simplesmente medicar ou reestruturar pensamentos, a escuta existencial convida o paciente a pensar: “o que está sendo revelado através desse sintoma?”, “qual é a angústia que está sendo encoberta?”, “o que minha ansiedade está tentando dizer sobre mim e o modo como vivo?”. Van Deurzen (2010) propõe que as crises de ansiedade, quando ouvidas com atenção, podem funcionar como limiares — portas para a transformação, e não apenas disfunções a serem tratadas.

Dessa forma, o modelo existencial não nega a dor do sintoma, mas se recusa a reduzir essa dor a um desequilíbrio químico ou a uma “falha” na estrutura cognitiva. Pelo contrário, vê nela uma linguagem que clama por escuta, uma expressão legítima de um ser que tenta — de forma precária, confusa, por vezes desesperada — lidar com o mistério e o peso de existir.

4. A clínica como lugar de escuta: entre o desvelamento e o cuidado com o insuportável

Na clínica existencial, a ansiedade não é compreendida como um defeito a ser corrigido, mas como uma expressão legítima da estrutura do ser. O terapeuta, nesse modelo, não se posiciona como técnico que busca suprimir sintomas, mas como alguém que acompanha o paciente na travessia do sofrimento, escutando aquilo que o sintoma tem a revelar sobre a verdade da existência. A angústia, nesse contexto, não é um obstáculo ao processo terapêutico, mas muitas vezes sua própria condição de possibilidade (Heidegger, 1927/2012).

Entretanto, essa escuta profunda não significa a recusa cega de qualquer forma de intervenção sobre o sofrimento. Como bem observa Emmy van Deurzen (2002), embora a angústia tenha um papel fundamental na abertura para o sentido, há estados de ansiedade tão intensos e desorganizadores que o sujeito perde completamente a capacidade de simbolização, de escolha e até mesmo de presença diante de si. Em tais momentos, quando o sofrimento psíquico ultrapassa os limites do suportável, torna-se necessário cuidar também da dimensão paliativa do existir — não como objetivo final, mas como preparação para a escuta.

Nesse sentido, Mandić (2024) ressalta que a prática clínica heideggeriana não é uma rejeição do alívio, mas sim uma crítica ao alívio sem escuta. Intervenções que visem a contenção de crises, o restabelecimento mínimo de estabilidade emocional ou até mesmo o uso provisório de técnicas de ancoragem não contradizem o projeto existencial, desde que estejam inseridas numa ética da presença — uma ética em que o objetivo nunca é eliminar a angústia, mas criar condições para que ela possa ser compreendida.

A própria filosofia heideggeriana, ao reconhecer que o Dasein é um ser lançado (Geworfenheit), abre espaço para o reconhecimento de sua vulnerabilidade. O ser humano não é apenas possibilidade; ele é também limite, corpo, desamparo. E há momentos em que o desamparo se converte em colapso — e o colapso exige cuidado. Thompson (2024), ao refletir sobre a primazia da autenticidade na clínica, reconhece que há situações em que o sujeito ainda não consegue sustentar sua liberdade, pois está tomado por pânico, desorganização ou retração extrema. Nesses momentos, a clínica existencial não impõe autenticidade como dever, mas oferece o solo mínimo onde ela possa, um dia, florescer.

Portanto, não se trata de escolher entre escutar ou intervir, entre sustentar o sintoma ou eliminá-lo, mas de perceber o que é possível para aquele ser, naquele momento. A escuta ontológica da ansiedade deve sempre vir acompanhada de uma sensibilidade ética que reconheça o limite: há momentos em que a dor precisa ser acolhida com medidas práticas de sustentação. Isso não implica medicalizar a existência ou recair em uma lógica de controle, mas sim reconhecer que há dores que gritam tão alto que precisam primeiro ser suavizadas antes de poderem ser ouvidas.

Assim, o terapeuta existencial transita entre dois polos: de um lado, o compromisso com a angústia como verdade; de outro, o compromisso com o cuidado como fundamento. Ele não se apressa a calar o sintoma, mas também não romantiza a dor. Entre a escuta e o abrigo, constrói-se uma clínica que não busca corrigir o ser, mas sustentá-lo até que ele possa, enfim, falar.

5. Considerações finais: reintegrar a angústia ao cuidado clínico

A ansiedade, sob o olhar existencial, não é um simples sintoma a ser extinto. Ela é, antes, um modo de expressão do ser diante da própria liberdade, da incerteza constitutiva da vida e da impossibilidade de garantias absolutas. A angústia, neste horizonte, revela-se como um movimento estruturante da existência humana: ela desvela, abre, convoca o sujeito a confrontar-se com o que ele é — e com aquilo que ainda não se tornou, mas pode vir a ser (Heidegger, 1927/2012).

Essa concepção ontológica, embora nascida do pensamento filosófico, não se restringe ao campo teórico. Ela possui implicações clínicas profundas. Um terapeuta que compreende a angústia como estrutura está mais bem preparado para reconhecer quando um paciente está em contato com uma crise existencial genuína — e não apenas com um “transtorno” que precise ser corrigido. Isso transforma radicalmente a forma como escutamos, nomeamos e acompanhamos o sofrimento psíquico. O que antes poderia ser classificado como disfunção ou falha passa a ser entendido como linguagem: um modo, ainda que tortuoso, de o ser humano dizer a si mesmo que algo em sua vida perdeu o sentido, ou que sua forma de existir já não o sustenta.

Essa escuta, no entanto, exige um cuidado ético fundamental. Como demonstram Van Deurzen (2002, 2010) e Thompson (2024), o sofrimento não pode ser romantizado. Embora a angústia revele verdades profundas sobre a existência, há situações em que ela se manifesta de forma insuportável, devastadora, desorganizando a capacidade de estar-no-mundo com alguma coerência. Nessas condições, o terapeuta existencial não deve se omitir em nome de uma fidelidade cega à ontologia. Ao contrário, é precisamente por respeitar a complexidade do ser que ele pode, em certos momentos, recorrer a estratégias de cuidado que aliviem temporariamente a dor — não para silenciar a angústia, mas para criar condições mínimas de escuta e reconstrução de sentido.

Mandić (2024) sustenta que o papel do terapeuta não é recusar toda e qualquer forma de intervenção, mas situá-la dentro de uma compreensão mais ampla da existência. Em alguns momentos, o que está em jogo não é a eliminação da angústia, mas a sustentação do ser em meio à sua crise. Isso pode significar acolher um silêncio, legitimar um não-saber, acompanhar um colapso sem precipitação. E, em outros momentos, pode significar reconhecer que há recursos — simbólicos, relacionais, farmacológicos — que podem proteger o paciente de uma queda mais profunda. A intervenção, aqui, é também ontológica: ela visa não interromper o processo de individuação, mas garantir que ele possa continuar.

Essa postura clínica, portanto, não se opõe ao cuidado prático. Ao contrário, ela o qualifica. Um psicoterapeuta, psicólogo ou psiquiatra que adota a perspectiva existencial se torna capaz de reconhecer os dilemas silenciosos que atravessam os discursos mais sintomáticos: o medo de ser livre, o vazio da repetição, a angústia diante da morte, a dor de viver uma vida inautêntica. Ele aprende a escutar o que está por trás do pânico, do controle obsessivo, da hiperatividade ou da retração depressiva. E mais do que isso: ele se posiciona como um outro que não julga nem conserta, mas que sustenta o espaço onde o sofrimento pode ganhar forma, nome, sentido.

Portanto, reintegrar a angústia ao centro do cuidado clínico é devolver ao trabalho terapêutico sua vocação originária: não apagar o sofrimento, mas compreendê-lo como expressão de um ser em busca de si. Isso exige tempo, presença, escuta e uma ética que vá além da eficácia técnica. Como bem sintetiza Van Deurzen (2005), o terapeuta existencial não oferece respostas prontas, mas acompanha o cliente na delicada tarefa de encontrar suas próprias perguntas — aquelas que fazem a vida, apesar da dor, valer a pena.

Concluímos, assim, que a angústia é mais do que um tema filosófico: ela é uma experiência concreta, vivida, clínica. Ela está no centro de muitas das queixas que chegam aos consultórios, mas quase sempre travestida de “transtorno”. Saber escutá-la, reconhecê-la e sustentá-la é um ato clínico de profundo respeito ao humano. É isso que a psicologia existencial nos oferece: uma lente que, longe de nos afastar da prática, nos torna mais sensíveis, mais precisos e mais éticos na forma como nos aproximamos da dor.

REFERÊNCIAS

DEURZEN, Emmy van. Existential counselling and psychotherapy in practice. 2. ed. London: SAGE Publications, 2002.

DEURZEN, Emmy van. Everyday mysteries: a handbook of existential psychotherapy. 2. ed. London: Routledge, 2010.

DEURZEN, Emmy van; ARNOLD-BAKER, Claire (orgs.). Existential perspectives on human issues: a handbook for therapeutic practice. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2005.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução de Fausto Castilho. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. Obra original publicada em 1927.

MANDIĆ, Mo. Heideggerian existential therapy: philosophical ideas in practice. London: Routledge, 2024.

THOMPSON, M. Guy. Essays in existential psychoanalysis: on the primacy of authenticity. London: Routledge, 2024.