Intencionalidade e Emoções: Reflexões existenciais sobre Angústia e Raiva em Sartre e outros diálogos
Este post explora a concepção existencialista das emoções segundo Jean-Paul Sartre, destacando a intencionalidade da angústia e da raiva. Dialoga com Simone de Beauvoir, Martha Nussbaum e Peter Goldie, ampliando a reflexão sobre como emoções expressam valores éticos, contextos sociais e narrativas pessoais. Por fim, aponta implicações práticas para a psicoterapia existencial, sugerindo que compreender as emoções nessa perspectiva integrada pode promover autoconhecimento e autenticidade.
REFLEXÕES DA CLÍNICA
3/22/202511 min read


Jean-Paul Sartre (2011; 1993; 2025) apresenta uma visão singular e profundamente existencial das emoções, atribuindo-lhes uma intencionalidade que vai muito além de simples fenômenos fisiológicos ou estados psicológicos passageiros. Para ele, as emoções são formas intencionais da consciência, modos particulares pelos quais o ser humano se relaciona com o mundo, atribuindo-lhe sentido e significado. Essa perspectiva radical transforma completamente a forma tradicional de compreender sentimentos como a angústia e a raiva, trazendo-os para o centro da discussão sobre o que significa existir.
Emoção como intencionalidade existencial
A intencionalidade, conceito central na fenomenologia de Edmund Husserl e que Sartre desenvolve de maneira existencial, refere-se ao fato de que toda consciência é sempre "consciência de algo". Não existe uma emoção isolada, vazia de objeto; toda emoção é sempre direcionada a uma situação, pessoa ou objeto específico (Sartre, 1993). Nesse sentido, as emoções não são reações passivas, mas interpretações ativas do sujeito frente ao seu mundo existencial, revelando muito mais sobre nós mesmos e nossa maneira de estar no mundo do que costumamos perceber.
A Angústia: o confronto inevitável com a liberdade absoluta
Em "O Ser e o Nada", Sartre (2011) caracteriza a angústia não como uma emoção negativa ou um problema psicológico a ser tratado, mas como uma revelação existencial inevitável. A angústia surge exatamente quando somos confrontados com o vazio de nossa existência, ou seja, com o fato de que não há nenhum destino pré-determinado ou essência que nos defina. É nesse encontro radical com nossa liberdade absoluta que percebemos, com angústia, que somos os únicos responsáveis pelas escolhas que determinam quem somos.
Essa experiência angustiante frequentemente emerge na clínica, especialmente quando o paciente é colocado frente à percepção perturbadora de sua própria responsabilidade existencial. Por exemplo, um homem em terapia pode relatar uma crise de profunda angústia ao perceber que não existem barreiras reais que o impeçam de mudar radicalmente sua vida: abandonar um relacionamento insatisfatório, trocar de carreira, migrar para outro país. Contudo, é exatamente essa ausência de barreiras que o angustia profundamente. A liberdade absoluta implica responsabilidade absoluta: não há desculpas, não há culpados externos, apenas ele e suas escolhas. O terapeuta, alinhado à perspectiva sartriana, pode ajudar o paciente a perceber que sua angústia é precisamente a experiência mais autêntica de sua condição existencial. Em vez de amenizá-la ou evitá-la, trata-se de compreendê-la como o ponto crucial no qual o indivíduo pode assumir verdadeiramente sua liberdade.
Refletindo existencialmente, percebe-se que muitos transtornos de ansiedade podem ser compreendidos como defesas do sujeito frente à angústia existencial descrita por Sartre. É comum que o indivíduo prefira ansiedades mais "seguras", com objetos definidos (medo de doenças, medo de falhar em determinada situação específica), a encarar a angústia radical da ausência absoluta de garantias. Ao direcionar sua atenção para um objeto específico (por exemplo, sintomas físicos ou o desempenho profissional), o sujeito tenta escapar da angústia autêntica, da percepção de sua liberdade incondicional e, portanto, de sua responsabilidade absoluta.
A Raiva: afirmação e resistência frente ao olhar do outro
Sartre (2011; 1993) também lança um olhar profundamente existencial sobre a raiva, vendo-a não como um impulso fisiológico automático, mas como uma interpretação ativa, uma tentativa da consciência de afirmar-se frente ao que percebe como ameaça ou injustiça existencial. Para Sartre, sentir raiva significa interpretar uma situação como um confronto à dignidade ou autonomia existencial do sujeito. Ao mesmo tempo, é uma afirmação intencional da resistência existencial, da tentativa do sujeito em não ser reduzido a objeto pelo olhar do outro.
Na prática clínica, a raiva frequentemente emerge não apenas como reação ao comportamento do outro, mas como resistência existencial ao risco percebido de perder a própria autonomia ou dignidade. Uma paciente que relata sentir intensa raiva de um chefe que a humilha pode ser compreendida na perspectiva sartriana como alguém que interpreta a situação existencialmente, percebendo-se reduzida a um objeto diante do olhar do outro. A raiva, nesse contexto, é a recusa ativa da paciente em aceitar a condição imposta pelo outro. Mais do que uma reação emocional automática, é uma expressão consciente e intencional de sua resistência existencial.
Sartre (2011) sugere que o conflito intersubjetivo é constitutivo da existência humana, pois os sujeitos constantemente tentam afirmar sua liberdade diante do outro. Dessa maneira, a raiva não é apenas um problema emocional a ser superado ou controlado, mas uma oportunidade para explorar mais profundamente a relação intersubjetiva do paciente com o mundo e consigo mesmo. O terapeuta existencial, ao invés de suprimir ou minimizar essa emoção, pode questionar o paciente: "O que esta raiva revela sobre sua percepção existencial diante do outro? O que está sendo ameaçado em você, existencialmente falando?"
Reflexões existenciais: emoção como autenticidade ou fuga?
Uma importante reflexão derivada da teoria sartriana das emoções é a distinção entre autenticidade e má-fé (Sartre, 2011). Sartre afirma que podemos encarar as emoções existencialmente, assumindo a responsabilidade por elas, compreendendo-as como manifestações de nossa liberdade e da forma como escolhemos interpretar nossa realidade. Ao contrário, podemos também mergulhar em uma má-fé, negando nossa responsabilidade emocional e atribuindo nossas emoções a fatores externos, fisiológicos ou sociais que, segundo essa interpretação, estariam fora de nosso controle.
Clinicamente, isso significa que a tarefa do psicoterapeuta existencial não é eliminar ou minimizar a emoção sentida pelo paciente, mas ajudá-lo a encará-la autenticamente. Ao experimentar angústia ou raiva, a grande questão existencial não é como "curá-la", mas como compreendê-la profundamente, assumindo a responsabilidade pela maneira como a interpretamos e reagimos ao mundo. Somente através dessa apropriação intencional das emoções é possível um verdadeiro crescimento existencial.
A intencionalidade emocional, portanto, transforma radicalmente nosso olhar clínico e existencial sobre a vida humana. Sentir angústia e raiva não são meras manifestações psíquicas ou corporais, mas expressões profundas e autênticas de nossa liberdade radical, de nosso contínuo embate existencial com o mundo e com os outros.
A abordagem existencialista de Jean-Paul Sartre encontra ecos e complementos importantes nas reflexões de Simone de Beauvoir, Martha Nussbaum e Peter Goldie. Esses autores ampliam nossa compreensão sobre emoções, trazendo reflexões complementares que enriquecem ainda mais a visão sartriana sobre intencionalidade emocional.
Simone de Beauvoir: Emoções, ambiguidade e opressão
Beauvoir (2019) complementa Sartre ao destacar a importância da ambiguidade existencial e das relações intersubjetivas no entendimento das emoções. Para ela, nossas emoções frequentemente revelam nossa cumplicidade ou resistência diante das estruturas sociais e existenciais que nos cercam. Beauvoir enfatiza que não vivemos isolados, e as emoções também surgem no contexto da tensão dialética entre liberdade individual e condicionamento social.
Clinicamente, é comum que pacientes manifestem angústia ou raiva em função de conflitos existenciais que se entrelaçam com questões sociais mais amplas. Uma paciente que sente intensa raiva por se ver subjugada por um relacionamento afetivo ou profissional opressivo revela não apenas uma interpretação subjetiva e existencial (como diria Sartre), mas também algo profundamente social e político (como acrescenta Beauvoir). Sua raiva não apenas defende sua autonomia existencial, mas pode também expor sua resistência contra um sistema que a objetifica ou a reprime. Assim, Beauvoir complementa Sartre, esclarecendo como emoções possuem também uma dimensão ética, social e política que não deve ser negligenciada na clínica.
Beauvoir (2019) também discute a "má-fé social": quando emoções como a vergonha ou culpa levam indivíduos a internalizar a opressão, sentindo-se responsáveis por injustiças sociais estruturais. Uma mulher em terapia pode sentir angústia por perceber que, apesar da liberdade existencial, suas escolhas são constantemente limitadas por pressões sociais. Nesse sentido, Beauvoir amplia Sartre ao trazer à tona como contextos sociais moldam e complicam nossa experiência emocional.
Martha Nussbaum: Emoções como juízos valorativos
Em uma abordagem mais analítica e profundamente ética, Nussbaum (2008) defende que as emoções não são apenas estados corporais ou impulsos irracionais, mas juízos valorativos que revelam nossa relação com o mundo e aquilo que nos importa. Segundo ela, uma emoção como a raiva envolve a crença de que algo errado foi feito contra nós ou contra alguém que valorizamos; a angústia frequentemente emerge da percepção de perda iminente ou ameaça ao nosso bem-estar emocional ou existencial.
Nussbaum complementa a perspectiva sartriana ao enfatizar o papel ético e valorativo das emoções. Por exemplo, uma pessoa em luto experimenta uma angústia profunda justamente porque atribui ao objeto perdido um valor insubstituível. Do ponto de vista clínico, compreender essa dimensão valorativa pode ajudar pacientes a refletir sobre o que suas emoções dizem a respeito de seus valores existenciais. Um paciente que relata sentir raiva recorrente em situações sociais pode descobrir, com auxílio terapêutico, que sua raiva é expressão não apenas de sua dignidade existencial (Sartre), mas também da percepção de injustiças ou violações morais significativas (Nussbaum).
Peter Goldie: Emoções como narrativas pessoais
Peter Goldie (2002), por sua vez, introduz uma visão narrativa das emoções, sustentando que nossa experiência emocional faz parte de um fluxo contínuo e estruturado, uma narrativa existencial que dá sentido à nossa vida emocional. Para Goldie, emoções como a raiva e a angústia não podem ser isoladas de nossa história pessoal: são partes significativas de uma narrativa que construímos continuamente sobre quem somos.
Na clínica existencial, essa perspectiva narrativa permite que pacientes explorem suas emoções em contextos mais amplos e históricos, compreendendo, por exemplo, como a raiva atual diante de uma situação específica pode estar vinculada a experiências passadas de humilhação ou opressão. Goldie ajuda-nos a compreender por que certas situações aparentemente pequenas despertam grandes emoções: elas reverberam intensamente na narrativa pessoal e existencial de cada indivíduo. Pacientes que reconhecem que suas emoções não são apenas respostas isoladas a eventos externos, mas expressões de uma narrativa pessoal complexa, tornam-se capazes de assumir uma perspectiva mais ampla e autêntica sobre suas vidas.
Reflexões Existenciais Clínicas
Beauvoir, Nussbaum e Goldie trazem contribuições valiosas ao pensamento sartriano sobre as emoções. Beauvoir nos desafia a considerar como as estruturas sociais afetam profundamente nossa experiência emocional, evitando um entendimento excessivamente individualista ou solipsista das emoções. Nussbaum convida a refletir sobre os juízos valorativos que compõem nossas emoções, elucidando a dimensão ética subjacente. Goldie, por sua vez, sugere que olhemos para a vida emocional como uma narrativa existencial em permanente construção.
Do ponto de vista existencial clínico, o terapeuta que se apropria dessas perspectivas torna-se capaz de ajudar seus pacientes a entender não só o que sentem, mas por que sentem e como essas emoções fazem sentido dentro de suas histórias pessoais e contextos sociais. Compreender as emoções como intencionais (Sartre), socialmente condicionadas (Beauvoir), valorativas (Nussbaum) e narrativas (Goldie) oferece uma compreensão profunda e multidimensional que pode facilitar o caminho para uma existência mais autêntica, significativa e integrada.
Na clínica existencial, o terapeuta é convidado a interpretar a emoção não como um sintoma isolado ou um mero desconforto a ser eliminado, mas como uma poderosa revelação da condição existencial do indivíduo. A angústia, a raiva, o medo ou a vergonha, vistas como intencionais e significativas (Sartre, 2011), socialmente implicadas (Beauvoir, 2019), eticamente valorativas (Nussbaum, 2008) e narrativamente estruturadas (Goldie, 2002), tornam-se portas abertas para uma exploração profunda e autenticamente transformadora.
Um paciente que relata angústia persistente, por exemplo, oferece ao terapeuta a oportunidade de explorar não apenas o sofrimento emocional imediato, mas sua relação existencial com a liberdade, responsabilidade e autenticidade. Ao invés de simplesmente tentar eliminar essa angústia, o terapeuta pode ajudar o paciente a aceitá-la e compreendê-la como parte integral da existência humana, inevitável e potencialmente esclarecedora. A angústia revela que somos radicalmente livres e responsáveis por criar nossos próprios sentidos existenciais, que vivemos constantemente à beira da incerteza absoluta, e que tal condição pode, paradoxalmente, ser libertadora quando assumida plenamente (Sartre, 2011).
A perspectiva de Beauvoir (2019) convida terapeutas a compreenderem as emoções também como manifestações das tensões sociais e políticas. Um paciente que sente raiva diante de situações de injustiça pode descobrir, com o apoio terapêutico, que sua raiva não apenas expressa uma resistência individual, mas também reflete sua percepção ética do mundo (Nussbaum, 2008). A terapia existencial que leva a sério essa dimensão social das emoções pode ajudar o paciente a mobilizar sua emoção em prol da mudança social, em vez de simplesmente considerá-la um problema individual a ser resolvido internamente (Beauvoir, 2019).
Desse modo, o terapeuta existencial que trabalha com emoções torna-se também um facilitador de consciência ética e social, ajudando pacientes a perceberem que sua dor emocional pode ser tanto pessoal quanto política. Isso pode resultar não apenas em maior autoconhecimento e autenticidade, mas também na motivação para engajar-se com o mundo externo, transformando angústia ou raiva em ações que promovam mudanças significativas (Beauvoir, 2019; Nussbaum, 2008).
A contribuição de Nussbaum (2008) enfatiza a dimensão ética e valorativa das emoções. Essa perspectiva é particularmente útil para ajudar pacientes a compreenderem que suas emoções revelam o que consideram importante, justo e significativo em suas vidas. Uma pessoa que sofre continuamente por ansiedade ou raiva pode descobrir, através da terapia existencial, que suas emoções são respostas valorativas profundas, reveladoras de seus valores centrais (Nussbaum, 2008; Sartre, 2011). Assim, em vez de simplesmente controlar ou anestesiar suas emoções, o paciente pode usá-las como uma bússola ética, direcionando suas ações de forma coerente com aquilo que verdadeiramente valoriza.
Goldie (2002) lembra-nos que as emoções são sempre partes integrantes de uma história pessoal, contínua e dinâmica. Terapeutas existenciais podem usar essa perspectiva narrativa para ajudar seus pacientes a compreenderem que emoções como a raiva ou a angústia são capítulos importantes na história contínua de suas vidas, carregados de significados acumulados ao longo de suas experiências anteriores (Goldie, 2002; Sartre, 1993). Dessa forma, o paciente é estimulado a reconsiderar suas emoções não como fenômenos isolados ou imediatos, mas como partes significativas e compreensíveis da sua história pessoal, permitindo uma ressignificação profunda e libertadora.
A abordagem existencial integrada proposta aqui, baseada nas contribuições de Sartre (2011, 1993), Beauvoir (2019), Nussbaum (2008) e Goldie (2002), oferece à clínica psicológica uma visão enriquecida e multidimensional das emoções. Nessa abordagem, emoções não são problemas a serem eliminados ou corrigidos, mas poderosas revelações da condição humana em suas múltiplas dimensões existenciais, sociais, éticas e narrativas.
A clínica que adota esta perspectiva oferece aos pacientes uma experiência terapêutica profunda e autenticamente transformadora. Emoções são valorizadas como partes vitais da experiência existencial, oferecendo caminhos poderosos para que o paciente possa conhecer-se melhor, compreender seus valores, assumir sua responsabilidade existencial e engajar-se autenticamente com o mundo social (Sartre, 2011; Beauvoir, 2019; Nussbaum, 2008; Goldie, 2002).
Em última instância, a verdadeira inovação clínica proposta por essa abordagem está na reconciliação profunda entre emoção e existência: as emoções tornam-se não só portas abertas à compreensão da existência, mas também guias essenciais na busca por autenticidade, liberdade e sentido. Na terapia existencial contemporânea, as emoções são reconhecidas e celebradas como manifestações profundas e essenciais do que significa ser humano (Sartre, 2011; Beauvoir, 2019; Nussbaum, 2008; Goldie, 2002).
Referências
BEAUVOIR, Simone de. Simone de Beauvoir e a libertação da mulher: do existencialismo sartriano à moral da ambiguidade. Porto Alegre: Editora Fi, 2019. 145 p.
BOYLE, Matthew. Intencionalidade e Emoções em Sartre. In: MARUŠIĆ, Berislav; SCHROEDER, Mark (Org.). Analytic Existentialism. Oxford: Oxford University Press, 2025.
GOLDIE, Peter. The Emotions: a philosophical exploration. Oxford: Clarendon Press, 2002. 261 p.
MARUŠIĆ, Berislav; SCHROEDER, Mark (Org.). Analytic Existentialism. Oxford: Oxford University Press, 2025.
NUSSBAUM, Martha C. Upheavals of Thought: the intelligence of emotions. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. 751 p.
SARTRE, Jean-Paul. Esboço de uma teoria das emoções. Tradução de Bernard Frechtman. New York: Philosophical Library, 1993.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. 808 p.