Introdução à Psicanálise Existencial Sartreana (Parte I)
Uma tentativa de explicar a delicada relação de Sartre com a psicanálise e seu manifesto por uma psicanálise existencial.
PSICANÁLISE EXISTENCIAL SARTREANA
3/25/20258 min read


1. O que é a Psicanálise Existencial Sartreana?
A Psicanálise Existencial Sartreana representa uma maneira singular de abordar o ser humano, seu sofrimento e suas escolhas, integrando a fenomenologia existencial à psicanálise, em um movimento filosófico original desenvolvido por Jean-Paul Sartre (1905–1980). A denominação pode causar estranheza à primeira vista: por que "psicanálise" se Sartre sempre foi crítico de algumas perspectivas fundamentais da psicanálise tradicional freudiana? A escolha não é casual, nem um equívoco conceitual. O termo "psicanálise" aqui evoca uma tentativa de penetrar nas camadas mais profundas e ocultas da "subjetividade" humana, explorando o fundamento existencial do indivíduo.
O marco inicial desse conceito surge em uma das principais obras de Sartre, "O Ser e o Nada", publicada originalmente em 1943. Nessa obra seminal, Sartre desenvolve uma ontologia fenomenológica original, a partir da qual se torna possível uma análise da consciência humana e da experiência do sujeito em sua relação inevitável e angustiante com o mundo (SARTRE, 2011). Sartre propõe que todo ser humano é livre e responsável por aquilo que faz de si mesmo, o que provoca um conflito constante entre o indivíduo e sua existência, marcada pela liberdade radical, pela finitude e pela inevitabilidade da escolha.
Diferentemente da psicanálise tradicional, que frequentemente busca as causas psíquicas dos fenômenos psicológicos em estruturas ou processos inconscientes, Sartre localiza a compreensão do sofrimento humano na própria estrutura da existência consciente. Para Sartre, o sofrimento não é derivado primariamente de processos psíquicos ocultos, mas da própria relação que o ser humano estabelece com o seu mundo, com a liberdade absoluta que o define e com a responsabilidade irrevogável pelas escolhas que realiza ou deixa de realizar (SARTRE, 2011).
A originalidade da Psicanálise Existencial Sartreana reside justamente nessa articulação: ela analisa os conflitos e sofrimentos da existência humana através da investigação do "projeto fundamental" do indivíduo – termo essencial em Sartre que define o sentido mais profundo que orienta a vida do sujeito, mesmo que ele não o reconheça explicitamente. Sartre vai além da superfície do comportamento humano, penetrando no nível da escolha originária pela qual cada sujeito molda sua vida. A tarefa dessa psicanálise existencial é desvendar a singularidade desse projeto original, entendendo-o não como fruto de fatores inconscientes ou traumas anteriores, mas como expressão livre e deliberada da consciência diante da finitude da existência e da liberdade total do ser humano (EDWARDS, 2022).
Em síntese, a Psicanálise Existencial Sartreana propõe-se a ser uma análise rigorosa e reveladora das escolhas existenciais que, embora definam profundamente quem somos, frequentemente permanecem veladas ou negadas pela "má-fé" existencial. Trata-se de investigar essas escolhas fundamentais que cada pessoa realiza diante da vida e do mundo, levando em consideração que o ser humano é ao mesmo tempo sujeito e objeto da própria investigação, em um constante movimento de desvelamento e ocultação da verdade de sua própria existência.
2. Por que Sartre utiliza o termo "psicanálise"?
Uma das perguntas mais frequentes que surgem quando estudamos a psicanálise existencial sartreana é sobre a escolha do termo "psicanálise". Por que Sartre decidiu utilizar esse conceito, especialmente se considerarmos sua posição crítica diante da psicanálise freudiana clássica?
Para compreender melhor essa escolha, devemos retornar brevemente à obra O Ser e o Nada (1943). Nessa obra, Sartre expressa claramente seu interesse em investigar os fundamentos ocultos da experiência humana, especialmente no que diz respeito às escolhas fundamentais que cada indivíduo realiza ao longo da sua existência. Em outras palavras, ele busca compreender aquilo que está por trás dos nossos atos cotidianos, o que os fundamenta existencialmente. Porém, Sartre não busca essa base na existência de uma estrutura inconsciente psíquica — como faria Freud —, mas sim na própria consciência que se realiza e se revela no mundo através de suas escolhas.
Sartre acredita que cada indivíduo possui um "projeto fundamental", uma escolha originária, muitas vezes velada e camuflada, que determina como a pessoa organiza e dá sentido à sua existência. Assim, o uso do termo "psicanálise" refere-se à tarefa de desvendar este projeto originário e fundamental — que, embora seja consciente, frequentemente permanece encoberto pela "má-fé". A "má-fé" para Sartre é um mecanismo pelo qual o indivíduo nega ou mascara a realidade da sua liberdade absoluta e da responsabilidade total por suas escolhas (SARTRE, 2011).
A escolha pelo termo "psicanálise" tem, portanto, um significado estratégico: Sartre pretende sinalizar que se trata de uma investigação profunda da existência, mas deslocada do campo tradicional da psicanálise freudiana. Sartre explicita claramente essa diferença ao explicar que não se trata de buscar um inconsciente, mas de identificar a escolha original pela qual o sujeito se constitui e constrói o significado do seu próprio mundo" (SARTRE, 2011).
Essa escolha fundamental não é um resultado das pulsões inconscientes, dos desejos reprimidos ou das estruturas determinantes da personalidade. Ao contrário, trata-se de uma escolha consciente, livre e originária, mesmo que muitas vezes permaneça negada pelo sujeito. Nesse sentido, a psicanálise existencial sartreana se propõe como uma espécie de "arqueologia" da escolha, que investiga como e por que o sujeito constituiu a si mesmo e a sua existência dessa maneira específica, compreendendo a estrutura do sentido que atribuiu à sua vida.
Assim, Sartre propõe sua psicanálise existencial como uma tarefa filosófica profunda que explora o modo pelo qual o indivíduo se tornou aquilo que é hoje — não por determinismos internos (inconsciente) ou externos (sociedade, cultura, genética), mas pela livre autodeterminação existencial, que é sempre passível de transformação. Diferentemente da psicanálise freudiana, a análise existencial não visa uma adaptação ou ajuste do indivíduo à realidade; ao contrário, busca levar o indivíduo a assumir plenamente a sua condição existencial, a responsabilidade pelas escolhas que fez e, principalmente, aquelas que ainda poderá fazer.
Portanto, ao adotar o termo "psicanálise", Sartre marca uma posição crítica, dialética e original em relação à tradição freudiana. A palavra torna-se quase uma provocação filosófica: investigar profundamente o sujeito não é explorar camadas ocultas e inconscientes da mente, mas sim desvendar escolhas e sentidos que, mesmo conscientes, estão frequentemente encobertos pelo sujeito que prefere ignorá-los para se proteger da angústia existencial.
Essa posição inovadora de Sartre é bem expressa por Mary Edwards (2022), ao afirmar que a psicanálise existencial sartreana é um desvelar rigoroso da responsabilidade do indivíduo diante de si mesmo e de sua condição existencial única e irredutível a quaisquer determinismos. Dessa maneira, Sartre estabelece sua abordagem como uma investigação filosófica profunda do ser humano, da consciência, e das escolhas que formam nossa identidade e experiência existencial no mundo.
3. Quais são os fundamentos básicos da Psicanálise Existencial Sartreana?
Para compreender com profundidade os fundamentos da psicanálise existencial sartreana, é importante considerar três aspectos centrais do pensamento filosófico de Sartre, que sustentam essa abordagem original e complexa: a consciência, a liberdade e a responsabilidade.
a) A consciência: intencionalidade e nada
O primeiro fundamento da psicanálise existencial sartreana é o conceito de consciência, profundamente influenciado pela fenomenologia de Husserl, ainda que com importantes modificações feitas por Sartre (SARTRE, 2011). Para Sartre, a consciência não possui conteúdos ou estruturas internas pré-estabelecidas. Ao contrário, ela é sempre consciência "de algo", definida pela intencionalidade, sempre projetando-se para fora, em direção ao mundo, às coisas, às pessoas e ao próprio futuro.
Em outras palavras, a consciência é vazia em si mesma — é o "não-ser", ou o "nada", que se dirige constantemente para aquilo que ela não é, estabelecendo sua existência justamente nesse movimento contínuo em direção ao outro e ao mundo. O "nada" é precisamente o que permite que o ser humano se diferencie dos objetos materiais, permitindo-lhe escolher, mudar, projetar-se constantemente em novas possibilidades.
Portanto, é entender que a consciência não é uma substância que contém conteúdos, mas é pura atividade de transcender-se em direção ao mundo, sendo justamente aquilo que não é, e não sendo aquilo que é.(SARTRE, 2011, p. 27). Esse ponto fundamental explica por que Sartre descarta o inconsciente freudiano como fonte do sentido humano. Para Sartre, tudo aquilo que afeta e mobiliza o indivíduo encontra-se na própria consciência, mesmo que por vezes não assumido, ou mantido em "má-fé" — não inconsciente, mas ocultado conscientemente pelo indivíduo.
b) A liberdade radical
O segundo fundamento essencial para a psicanálise existencial sartreana é a noção de liberdade radical. Para Sartre, não existe uma essência humana previamente estabelecida: a existência precede a essência. O ser humano surge no mundo sem uma finalidade pré-determinada, sem uma natureza ou um destino prévio que deva cumprir. Em razão disso, cada indivíduo deve, continuamente, criar seu próprio sentido, suas próprias razões, seu próprio significado.
Nesse contexto, Sartre atribui à consciência humana a liberdade absoluta e inevitável de determinar-se e escolher-se continuamente. Mesmo quando tenta negar ou escapar dessa liberdade, cada pessoa ainda está realizando uma escolha fundamental: a escolha da própria negação, da própria má-fé, tentando fingir que não possui alternativas, fugindo da angústia de ter que se responsabilizar pelo que escolheu ser.
Portanto, seria dizer que o ser humano está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si próprio, e no entanto livre porque, uma vez lançado no mundo, é responsável por tudo o que fizer (SARTRE, 2011).Essa liberdade é radical porque precede toda condição existencial e possibilita a mudança radical do indivíduo a qualquer momento. É uma liberdade inevitável e incontornável.
c) Responsabilidade e Angústia
Como terceiro fundamento, temos o conceito de responsabilidade. Essa liberdade absoluta, que permite ao indivíduo construir continuamente a sua existência, traz consigo a responsabilidade absoluta pelo que se é e pelo que se faz. Não há como culpar a história, a sociedade, o inconsciente ou outras pessoas pelo que somos. Sartre reconhece que todas essas influências existem e nos afetam; porém, jamais podem ser consideradas determinantes em última instância.
Ser humano é assumir responsabilidade radical sobre aquilo que decidimos fazer com as influências que recebemos. Isso gera uma angústia existencial profunda, pois reconhecer nossa liberdade absoluta significa assumir a total responsabilidade por aquilo que somos e fazemos com a nossa existência. A angústia é o sentimento inevitável e permanente dessa responsabilidade imensa.
Para Sartre, no entanto, essa angústia é também o caminho para a autenticidade. Reconhecer nossa responsabilidade radical é libertar-se da má-fé e assumir plenamente nossa condição existencial. A angústia é precisamente a consciência da liberdade, que reconhece a responsabilidade absoluta sobre a vida e o destino. (SARTRE, 2011).
d) O Projeto Fundamental e a Má-Fé
Diante desses três fundamentos principais — consciência, liberdade e responsabilidade —, Sartre concebe o conceito de "Projeto Fundamental". Todo indivíduo realiza continuamente uma escolha básica, original e estruturante, ainda que velada ou negada pela má-fé, que determina o sentido global que ele atribui à sua existência. O projeto fundamental não é um conjunto de metas conscientes ou um plano de vida estabelecido previamente. Trata-se de um sentido global, uma direção que cada pessoa estabelece ao longo de sua vida para orientar suas escolhas existenciais e dar significado à sua existência.
Por outro lado, Sartre percebe que muitos indivíduos negam essa liberdade e responsabilidade radical, utilizando estratégias existenciais de autoengano ou má-fé. A má-fé é justamente a tentativa de esconder-se de sua liberdade absoluta e fingir-se determinado, submetido ao destino, às circunstâncias ou ao inconsciente.
Na próxima parte abordaremos mais sobre os desencontros e encontros de Sartre com Freud e as possibilidades de encontros que hoje podemos realizar com a psicanálise pós-freudiana.