Responsabilidade Existencial: Tecendo Liberdade em Cada Escolha
Um textão bem "textudo" para você repensar seu papel no mundo.
INTRODUÇÃO TEÓRICA
3/18/202511 min read


A Psicologia Existencial explora as questões mais fundamentais da condição humana – entre elas, a liberdade e a responsabilidade. Em uma tonalidade poética, podemos dizer que carregamos o peso e a dádiva de nossa liberdade, sendo autores e atores de nossas vidas. Jean-Paul Sartre (2005) afirmou que sentimentos como angústia e desamparo são inseparáveis da responsabilidade, ou seja, ser livre implica estar consciente do peso de nossas escolhas, sem muletas metafísicas ou deterministas para nos eximir. Nesse contexto, a Psicologia Existencial entende o ser humano como um projeto em constante construção, condenado à liberdade e, portanto, irremediavelmente responsável por dar sentido à própria existência.
No campo clínico, autores como Emmy van Deurzen destacam o papel transformador da terapia existencial. Em vez de apenas aliviar sintomas, essa abordagem convida o indivíduo a confrontar as grandes questões de sua vida – inclusive a busca de significado e responsabilidade por suas ações (Van Deurzen, 2008). A felicidade, para a Psicologia Existencial, não é uma simples obtenção de prazeres, mas um subproduto de uma vida autêntica e responsável (Van Deurzen, 2008). Assim, neste texto, exploraremos o tema da responsabilidade em três dimensões interligadas: individual, interpessoal e social. Em cada esfera, a responsabilidade revela nuances diferentes – da angústia da decisão solitária, passando pelos vínculos e pelo olhar do outro, até o engajamento na transformação do mundo. Em todas elas, porém, mantém-se central à condição humana e fundamental para a compreensão existencial do ser.
Responsabilidade Individual: Liberdade e Angústia na Tomada de Decisões
No âmbito individual, responsabilidade e liberdade caminham juntas como duas faces da mesma moeda. Ser livre significa não haver desculpas últimas fora de nós mesmos – somos nós que escolhemos nossos caminhos, e arcaremos com as consequências dessas escolhas. Sartre (2005) sugere que o ser humano está sozinho, sem desculpas no mundo, tendo de decidir a cada momento quem deseja ser. Não é de se estranhar, portanto, que a angústia surja diante da infinidade de possibilidades e do reconhecimento de que não há uma essência prévia que nos dite o que fazer. Como observa Emmy van Deurzen (2008), a ansiedade acompanha a experiência da liberdade e da responsabilidade, sinalizando tanto o desafio quanto a possibilidade contidos em nossas escolhas.
A angústia, nesse sentido, não é patológica em si mesma; é antes um indício de que percebemos a seriedade de nossa liberdade – há algo em jogo e somos nós que devemos agir. A terapia existencial muitas vezes encoraja o cliente a assumir a autoria de sua própria vida, reinterpretando a ansiedade não apenas como medo paralisante, mas como um convite à ação e à descoberta dos próprios valores (Van Deurzen, 2008).
Neste sentido, vale o conceito de Sartre da má-fé, a tentativa de fugir da responsabilidade fingindo não ser livre, temos uma tendência a querer conservar a nossa independência e responsabilidade, enquanto também estamos sempre prontos a refugiar-nos na crença no determinismo, caso tal liberdade nos pese (Sartre, 2005). Em outras palavras, muitas vezes nos enganamos com desculpas (como “as coisas são assim mesmo” ou “não tive escolha”) para aliviar o fardo da responsabilidade. Essa autoilusão, porém, nunca é plenamente bem-sucedida – como o próprio Sartre nota, fugir da angústia é uma forma de tomar consciência dela.
Negar a liberdade traz um custo interno: uma vida inautêntica, guiada por roteiros alheios ou pelo “deixa estar”. Já o assumir da responsabilidade pessoal – ainda que angustiante – é o que permite a autenticidade. Estamos perpetuamente comprometidos em nossa escolha, diria Sartre, e a angústia é o testemunho dessa liberdade radical.
Assim, no nível individual, a responsabilidade em Psicologia Existencial implica aceitar o risco da liberdade. Cada decisão importante – seja uma mudança de carreira, o fim ou início de um relacionamento, ou a definição de um valor pessoal – carrega a angústia da incerteza e a ausência de garantias. Mas é apenas assumindo essa angústia que podemos nos tornar fiéis a nós mesmos. Em vez de delegar ao destino ou a outrem, reconhecer “eu sou o responsável por minhas escolhas” é um ato de coragem existencial. Essa postura, embora difícil, pode converter-se em fonte de crescimento e significado: ao nos darmos conta de que somos agentes, recuperamos também um senso de poder pessoal sobre nossa vida. A responsabilidade individual, portanto, é vivida na tensão entre o peso (o medo, a angústia) e a possibilidade (a liberdade, a criatividade) – tensão essa que está no coração da existência humana.
Responsabilidade Interpessoal: O Olhar do Outro e os Vínculos Humanos
Nenhum ser humano é uma ilha. Nossa liberdade individual encontra imediatamente o limite e o espelho na presença do outro. A dimensão interpessoal da responsabilidade emerge no encontro entre consciências – eu e o outro – trazendo desafios próprios: como ser livre e, ao mesmo tempo, respeitar a liberdade alheia? Como conviver autenticamente sem reduzir o outro a um objeto ou ser reduzido a tal? Sartre celebrou essa tensão ao afirmar, de forma provocativa, que "o inferno são os outros"; mas antes do inferno, os outros são condição para nosso existir. Ele argumenta que o Outro funciona como um mediador entre mim e mim mesmo: é através do olhar alheio que muitas vezes tomo consciência de aspectos de mim que sozinho não alcançaria (Sartre, 2005). Por exemplo, a vergonha – sentir-se exposto e julgado – revela-nos a nós mesmos sob a perspectiva do outro. Essa experiência, embora desconfortável, é profundamente reveladora: “a vergonha é, por natureza, reconhecimento. Reconheço que sou como o Outro me vê” (Sartre, 2005). Nela, assumimos a responsabilidade (às vezes dolorosa) pelo modo como aparecemos no mundo e afetamos quem nos rodeia.
As relações interpessoais colocam, portanto, a necessidade de uma responsabilidade mútua. Na relação eu-tu, meu ser influencia e é influenciado pelo ser do outro. Sartre, em O Ser e o Nada, descreveu o amor como um jogo tenso de liberdade e posse: o amante desejaria possuir uma liberdade como liberdade (van Deurzen, 2008)– isto é, quer que o ser amado se entregue voluntariamente, sem deixar de ser livre.
Esse paradoxo ilustra a dificuldade de conciliar desejo e respeito, autonomia e vínculo. Muitas vezes, sem perceber, caímos em tentativas de controlar o outro (ciúme, manipulação) ou, no inverso, de nos anular pelo outro, fugindo da responsabilidade sobre quem somos. Vínculos humanos exigem equilíbrio: ao mesmo tempo em que sou responsável por minhas ações em relação ao outro (por exemplo, pela promessa que faço, pelo cuidado que dedico, pelo impacto das minhas palavras), não sou responsável pelas escolhas do outro – reconhecer a alteridade implica aceitar que o outro também é livre e responsável por si.
Embora Sartre inicialmente tenha enfatizado o conflito nas relações (como no exemplo do amor possessivo ou na cena clássica do olhar objetificante do Outro), ele próprio revisitou essas ideias posteriormente. No Hope Now (entrevistas de 1980), Sartre reconhece que é possível uma relação menos alienante, especialmente em contextos de colaboração e objetivos comuns (Sartre; Lévy, 1996). De fato, em sua obra posterior, Crítica da Razão Dialética, Catalano (1987), aponta que Sartre admite que além de relações competitivas de dominação, podem emergir relações de cooperação e mutualidade, nas quais os indivíduos dão generosamente uns aos outros e alcançam mais do que conseguiriam sozinhos.
Dessa forma, a responsabilidade interpessoal envolve assumir ativamente o compromisso ético com o outro – o que inclui honestidade, empatia, reconhecimento da dignidade e liberdade alheias – e, simultaneamente, não abdicar de si mesmo. É uma responsabilidade compartilhada: cada um deve se responsabilizar pelo que oferece na relação (seja amor, amizade, parceria) e por como enxerga o outro (como sujeito, nunca meramente como instrumento para seus fins). Quando duas pessoas abraçam essa responsabilidade mútua, abre-se a possibilidade de um encontro autêntico, em que ambos crescem e se revelam em profundidade. Assim, a dimensão interpessoal da responsabilidade nos lembra que somos, em parte, responsáveis uns pelos outros – não no sentido de controlar ou salvar o outro, mas de responder por nossa parcela na relação, seja ela de cuidado, respeito ou mesmo de necessário confronto, sempre mantendo o reconhecimento da alteridade.
Responsabilidade Social: Engajamento e Transformação do Mundo
A terceira dimensão da responsabilidade é a social, que extrapola o âmbito do eu e do tu para abranger o nós. Aqui, a Psicologia Existencial dialoga com a filosofia política e a ética: qual é nossa responsabilidade perante a sociedade, a história e a humanidade? Sartre, um pensador engajado, insistiu que não bastava ao sujeito refugiar-se em sua autenticidade individual; a verdadeira autenticidade implicaria também assumir a responsabilidade pelo estado do mundo, já que este é resultado da ação (ou omissão) humana. Ao escolher por si, o indivíduo escolhe uma imagem de ser humano que, em princípio, vale para todos.
Catalano (1987) demonstra como o foco de Sartre passa a recair sobre as dinâmicas coletivas: ele analisa como grupos se formam e agem, e introduz noções como a responsabilidade coletiva e a solidariedade. Sartre mostra que, no grupo, cada indivíduo assume que é responsável pelo ato de todos, assim como todos o são por ele. Nesse surgimento do “nós”, a liberdade ganha uma dimensão comunitária – passamos a nos ver como parte de um todo maior, co-responsáveis pelos rumos tomados em conjunto.
A responsabilidade social, na ótica existencial, significa reconhecer que somos responsáveis não apenas pelo que fazemos individualmente, mas também pelo que acontece em nossa sociedade, na medida em que nossa ação (ou inação) contribui para tal. Omissão também é escolha. Van Deurzen (2008) observa como é tentador “virar o rosto” diante de injustiças que não nos atingem diretamente, mantendo nosso conforto pessoal. Entretanto, a realidade mostra que, quanto mais estamos dispostos a enfrentar os problemas que não nos concernem diretamente melhor fazemos também o nosso próprio mundo. Em última instância, “aquele que aceita passivamente o mal acaba envolvido nele tanto quanto quem o pratica”, para citar Martin Luther King Jr. (apud Van Deurzen, 2008)
Essa tomada de consciência pode ser desconfortável – implica admitir, por exemplo, que benefícios que desfrutamos podem ter relação com a exploração de outros, ou que nossa “neutralidade” frente a opressões equivale a concordância tácita. Sartre, em suas entrevistas tardias, confessou sentir a carga da responsabilidade coletiva como francês diante da guerra da Argélia: “eu era injusto como os demais franceses”, disse ele, referindo-se aos horrores do colonialismo, concluindo que havia então “uma responsabilidade coletiva” a ser enfrentada (Sartre; Lévy, 1996). Esse reconhecimento o levou a apoiar ativamente a luta anticolonial, exemplificando o que chamamos de engajamento – a postura do intelectual ou cidadão que toma posição e age para transformar a realidade.
Do ponto de vista da Psicologia Existencial, a responsabilidade social também perpassa o trabalho terapêutico e a compreensão do sofrimento humano. Problemas individuais não ocorrem em vácuo; o contexto sócio-histórico importa. Questões como injustiça, desigualdade, guerra, crises econômicas ou climáticas afetam o sentido que as pessoas encontram em suas vidas. Assumir responsabilidade social, para o existencialismo, não significa que cada indivíduo deva “salvar o mundo” sozinho – seria uma tarefa impossível e angustiante. Significa, antes, reconhecer-se como parte do mundo e, nesse sentido, nunca totalmente isento do que nele ocorre. “Estamos todos envolvidos na História”, poderia dizer Sartre. Cada ação nossa ajuda a perpetuar ou a mudar as circunstâncias coletivas. Catalano (1987), comentando Sartre, resume bem essa ideia ao afirmar que uma vida autêntica exige colocar o bem no mundo, mesmo em face do desespero, da angústia e do desamparo.
Não há garantias de sucesso – pelo contrário, a lucidez existencial nos ensina que o futuro é incerto e a condição humana, trágica em muitos aspectos. Ainda assim, aceitar essa responsabilidade sem garantias é o cerne da ética existencial. É agir porque é o certo a fazer, porque o projeto de humanização do mundo depende de nós, ainda que possamos falhar. Essa é a aposta moral do existencialismo: agir sem garantias, engajar-se sem certezas.
Em suma, na dimensão social, responsabilidade significa engajamento. Trata-se de se posicionar diante das injustiças, de contribuir para a comunidade, de assumir um papel ativo como cidadão. Para a Psicologia Existencial, fomentar esse engajamento pode ser parte do processo terapêutico: ajudar o indivíduo a encontrar sentido também além de si mesmo, em causas, trabalhos ou relacionamentos que conectem ao coletivo.
Em última análise, ser responsável socialmente é reconhecer que a liberdade não ocorre no vazio, mas em um mundo partilhado, onde minha liberdade e bem-estar estão entrelaçados à liberdade e bem-estar dos outros. Assim, a Psicologia Existencial propõe um “humanismo” ativo: cada indivíduo, ao se transformar, pode também transformar sua comunidade, e vice-versa, num círculo virtuoso de sentido e responsabilidade.
Conclusão
Percorremos as sendas da responsabilidade – do indivíduo consigo mesmo, passando pela relação com o outro, até a responsabilidade perante o mundo. Em todas essas esferas, a Psicologia Existencial nos mostra uma visão integrada: ser humano é ser responsável. Essa responsabilidade total pode parecer excessiva, quase sobre-humana. Sartre chegou a dizer que o homem está “condenado à liberdade”, sublinhando o caráter inevitável (e por vezes penoso) de termos que escolher e responder por nossos atos. No entanto, longe de ser apenas um fardo, a responsabilidade também se revela nossa maior possibilidade de realização. É através dela que criamos valores, que construímos relacionamentos significativos e que encontramos propósito na coletividade.
Assumir a responsabilidade pela própria vida pode ser visto como um ato de criação de si – uma postura ativa em que deixamos de ser vítimas das circunstâncias para nos tornarmos protagonistas. Do mesmo modo, assumir a responsabilidade em nossas relações aprofunda os laços e nos ensina sobre empatia, confiança e perdão. E assumir a responsabilidade social nos conecta a algo maior, proporcionando um sentido de contribuição e legado.
Importa frisar que responsabilidade, na perspectiva existencial, não é sinônimo de culpa paralisante ou de carregar o mundo nas costas de forma doentia. Ao contrário, trata-se de uma responsabilização libertadora: ao reconhecer meus limites e minhas obrigações, torno-me livre para agir dentro do que me é possível, com engajamento e humildade. Como conclui Van Deurzen (2008), não podemos esperar que a vida nos entregue felicidade ou sentido de mão beijada – precisamos “ganhá-los” continuamente através de nossos esforços. É nesse empenho renovado, nessa disposição de responder aos desafios que a vida coloca, que reside a chance de encontrarmos uma felicidade genuína e um sentido duradouro. Em outras palavras, a responsabilidade é o preço e a recompensa da liberdade: ela nos impõe trabalho, mas é o único caminho para uma vida plena de significado.
Convido, portanto, o leitor a uma reflexão final: de que maneiras você tem assumido – ou talvez evitado – as responsabilidades que sua liberdade lhe confere? Quais decisões aguardam por sua autoria? Quais relacionamentos pedem a coragem de uma presença mais autêntica? E quais problemas do mundo tocam a sua consciência, chamando-no ao engajamento? A Psicologia Existencial nos ensina que essas perguntas dificilmente têm respostas fáceis ou definitivas. Viver é navegar entre dúvidas, e a responsabilidade é o leme que nos orienta em meio às tempestades da existência. Tomar esse leme em nossas mãos – eis o ato de coragem e criação que está ao nosso alcance.
Que este texto tenha inspirado em você, caro leitor, a vontade de assumir mais plenamente a autoria da sua vida, lembrando que, nas palavras de Sartre, “a vida não tem sentido a priori. Antes de viver, a vida não é nada; cabe a você dar-lhe um sentido”. E esse sentido, inevitavelmente, passa pela responsabilidade que você escolhe abraçar.
Referências
CATALANO, J. S. A Commentary on Jean-Paul Sartre’s Critique of Dialectical Reason. Chicago: University of Chicago Press, 1987.
DEURZEN, E. van. Psychotherapy and the Quest for Happiness. London: Sage Publications, 2008.
SARTRE, J.-P. O ser e o nada: Ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Vozes, 2005.
SARTRE, J.-P.; LÉVY, B. Hope Now: The 1980 Interviews. Chicago: University of Chicago Press, 1996.